Lançada ainda viva ao fosso. Vítima não apenas de agressão, mas também de sevícias sexuais, indica a autópsia. A cada dia que passa, aumenta o horror dos pormenores sobre o assassinato de Gisberta, mas também a nossa indignação com a forma como o caso tem vindo a ser noticiado, comentado, ou mesmo "branqueado".
"Como foi possível?", pergunta a capa do jornal Público de ontem. Mas a pergunta a fazer é "como foi possível que ainda não tivesse acontecido?" Ou não sabemos o país que pisamos? Ou não conhecemos a realidade de um sistema de protecção de menores que mais não é que a continuação do abandono e dos maus tratos? Ou não sabemos da violência da exclusão social entre nós, e das políticas que a promovem? Ou não sabemos da discriminação que sofrem os sem-abrigo, os seropositivos, @s prostitut@s, @s homossexuais e particularmente @s trans, que até na comunidade gay são fortissimamente discriminad@s?
É chocante que o jornal Público utilize os termos "acção mais inconsciente que premeditada". Assumamos que não houve intenção de matar: o que há de inconsciente e não premeditado no insulto transfóbico e na agressão continuadas, no levar progressivo da violência à sua forma mais extrema, na prática de tortura e sevícias sexuais sobre uma pessoa que não tinha hipóteses de defesa ?
É vergonhoso e tristemente revelador que tendo o movimento LGBT organizado mais de uma década de história em Portugal, a comunicação social não saiba ainda a diferença entre uma transexual e um travesti , ou entre homofobia e transfobia, orientação sexual e identidade de género, mesmo sabendo que num primeiro momento de reacção ao crime, as próprias associações gays e lésbicas (mais uma vez por falta de comunicação com a única associação trans existente em Portugal) contribuíram para estas duas últimas confusões. Os jornalistas deviam questionar seriamente a sua consciência profissional, os seus próprios preconceitos, a abordagem mediática à questão dos direitos LGBT, com particular incidência sobre a população trans, a mais vilipendiada, gozada, usada, discriminada, desfavorecida, desprotegida e incompreendida no universo mediático, na sociedade e mesmo na envergonhada e preconceituosa comunidade gay, que, dizemos há muito, também deve pôr a mão na consciência, porque também é culpada pela exclusão e abandono da população trans, e reproduz por vezes ao quadrado o preconceito, a ignorância e a perversidade de uma sociedade assente na hipocrisia e na violência sexista e heterossexista.
Muitos órgãos de comunicação social optaram por se referir apenas a uma pessoa "sem-abrigo". Em circunstâncias normais, até poderia ser bom que uma pessoa fosse descrita exactamente como "pessoa" pela imprensa sem recurso a características que são alvo de discriminação social - Transexual, sem-abrigo, seropositiva, prostituta. Mas cada vez fica mais claro o papel que (certamente também) tiveram o preconceito e a discriminação neste crime, e mesmo se assim não fosse, o preconceito já expresso por muitos comentadores na reacção ao crime exigiriam que disto se falasse.
Não cabe aos jornalistas - nem a ninguém - decidir se foi a característica "sem-abrigo" a que pesou mais nas motivações para o acto, ou qualquer outra. Infelizmente, coube ao preconceito. Gisberta acumulava exclusões, nenhuma delas pode ser omitida. Transexual que era, e vítima da transfobia à portuguesa. Muito mais do que enumerá-las todas (como temos feito), omitir essa característica é esconder (mais do que) prováveis motivações e querer atribuir ao crime, sem informação que o sustente, uma ou outra motivação particular. Com o que se sabe, só há duas atitudes correctas: ou evitar referir motivações e esperar por mais informação, ou, como fizemos, considerar o conjunto das possíveis motivações. Tudo o resto é, mesmo que não queira sê-lo, manipulação grosseira e reforço da discriminação.
É criminoso que o padre Lino Maia, presidente da União das Instituições Particulares de Solidariedade Social e também director da Pastoral Social e Caritativa da Diocese do Porto, tenha insinuado na quinta-feira que a vítima andaria a "molestar" os jovens, para ontem surgir na RTP com uma nova versão, diferente e ainda pior, sustentando que os rapazes teriam "circunstâncias atenuantes" porque um outro rapaz da instituição andaria a ser assediado por um pedófilo (que não - obviamente - a vítima). Até perante a morte de uma pessoa, os responsáveis da Igreja continuam a lavar as mãos de responsabilidades sobre o preconceito e a tentar fugir com o rabo à seringa através da associação abusiva entre abuso de menores e a população LGBT. Desespero, de alguém que não percebe que com tais declarações reforça a convicção da motivação discriminatória deste crime?
É normal que a colunista Helena Matos se exprima hoje no Público com um artigo que parece ter por único objectivo negar - sem bases - qualquer componente relacionada com "orientação sexual" (e não identidade de género, mais uma vez a ignorância de quem se recusa a informa-se convenientemente e fala do que não conhece) neste crime. Claro que o facto de a vítima ter sido alvo de uma particular forma de tortura, a inserção de objectos no seu anús, é para ignorar. Helena Matos fala das "nossas culpas". Ainda bem que assume, pela primeira vez, a sua homofobia, que normalmente esconde sob uma capa de absoluta tolerância. Mas nunca nos enganou, e há muito que é uma das porta-vozes do preconceito encapotado. Assuma a sua má consciência quanto ao preconceito, mas não nos englobe, porque há quem faça de combatê-lo a sua vida.
É escandaloso que nem um partido ou responsável político - além do vago e cauteloso "choque" do ministro da Solidariedade e Segurança Social - se tenha pronunciado ainda sobre o caso , mesmo com o argumento que parece adivinhar-se (e já se ouve) de que não será evidente falar-se num "crime de ódio" quando os presumíveis - pelos vistos confessos - agressores são menores.
A questão, senhores, não está em criminalizar "crianças" de menor idade, como têm defendido comentadores e meios que por acaso costumam ser a voz da preconceito anti-lgbt nos nossos media. O estado que assuma as responsabilidades que nunca assumiu sobre as que são "crianças". Que puna judicialmente quem tem idade para ser responsabilizado criminalmente. Mas que não se confundam "crianças" com "jovens", e que, não esquecendo a idade dramática de parte do grupo, não se desculpabilize o crime e o preconceito em si. Porque os sentimentos que geram o ódio, esses são da responsabilidade dos adultos e de quem dirige o país.
Continuamos à espera de reacções e acções consequentes.
Não nos perguntaremos se as crianças são capazes de odiar. A sociedade portuguesa odeia, e é nela que as crianças crescem. Que não se esqueça que o ódio, especificamente a transfobia e o preconceito contra a população LGBT em geral são um problema social grave que perpassa todas as gerações e entre elas se reproduz. Que se reconheça que a questão só está e só pode estar nas medidas de combate e PREVENÇÃO das discriminações e desigualdades no seu conjunto, e, no caso da comunidade LGBT, no reconhecimento de direitos iguais e de legitimação social. Sim, desta vez, foram "jovens". Em todos os casos que têm consubstanciado um aumento das agressões transfóbicas e homofóbicas em Portugal nos últimos dois anos, não foram jovens os perpetradores, e a regra tem sido o silêncio e o esquecimento.
E da próxima? Esperaremos por um novo crime de ódio, cometido por adultos para tomar posição e agir? Para agravar (não em função da idade) os crimes e as discriminações por motivo da condição social, do estado de saúde ou da motivação transfóbica e homofóbica? Para implementar uma Educação Sexual nas escolas que combata os preconceitos? Para enfrentar de vez o inferno que é o sistema de protecção de menores? Para combater as exclusões com políticas de igualdade social? Se assim for, todas as lágrimas agora choradas são de crocodilo.
Continuamos à espera de reacções e medidas consequentes! E não admitiremos esse silêncio!