sexta-feira, 8 de maio de 2009

Casamento

O casamento de pessoas do mesmo sexo enquanto pequenino passo pelo fim
da ditadura do binarismo de género


No comunicado de imprensa pantérico sobre os projectos de lei de
alargamento do casamento civil a duos do mesmo sexo pode ler-se «o
Parlamento tem agora uma oportunidade para legislar no sentido da
efectiva laicização do Estado e do combate à discriminação em função
do sexo atribuído à nascença ou do sexo das pessoas que amam.»

O «sexo atribuído à nascença» parece ter confundido algumas pessoas,
pelo que tentei explicar o sentido de tal redacção.

X não poder casar com Y por causa do sexo não é um problema só do sexo
que atribuíram a Y. Isto é, o problema não é "só" X amar alguém do
sexo tal. É-o igualmente ter sido atribuído a X o sexo tal (e ninguém
perguntou nada a X antes de declarar que teria esse sexo). Ambas as
coisas são a mesma trampa (e ao mesmo tempo são diferentes). Ambas
impedem X de casar com Y e ambas são originadas pela mesma concepção
da organização social e pela mesma visão do mundo (social e "natural")
e, ao mesmo tempo, ambas são distintas e ocorrem em "momentos da vida
legal" (à falta de melhor expressão) específicos.

Por outro lado o sentido do «sexo atribuído à nascença» não se esgota
no caso das identidades transexuais nem há no texto (parece-me) nada
que o indique.

Nem sequer se esgota no leque nas identidades trans não transexuais
(aquelas que são "ainda mais" desviantes do sacrossanto binarismo de
género que tentam impingir-nos todos os dias).

Em função do sexo que @ sotôr(a) te atribui à nascença assim podes ou
tens de fazer certas coisas (ou não).

Um exemplo:
A X é atribuído o sexo masculino. Só por isso X será alvo de
determinadas acções (em casa, na escola, na rua, na tv) no sentido de
o/a formatarem para ser um "menino". Também só por isso X ficará numa
listinha para ser chamado ir à tropa em caso de guerra. No caso de X
ter nascido com genitália "ambígua" provavelmente os paizinhos vão
ficar desorientados e o talhante de serviço no hospital vai impor uma
cirurgia "correctiva" (sem que X tenha sequer oportunidade de saber o
que vai ser quando crescer, quanto mais de emitir opiniões sobre a
"correcção").

Ao legislar (ainda que pontual e debilmente) no sentido de sermos
tod@s "malta" aos olhos da lei – como no caso de o casamento deixar de
ser entre senhor e uma senhora [1] para passar a ser entre quaisquer
duas pessoas – dá-se um pequenino passo no sentido de mandar às
urtigas a importância (para a lei) de X ser do sexo A, B ou C (sim, eu
sei que não há nenhum C na lei).

Ou ainda de outro ângulo:

A e B não podem casar porque são dois homens do sexo masculino. É a
homofobia nas leis.

X e Y não podem casar porque são duas mulheres do sexo masculino.
Mesmo que pudessem mudar de sexo continuariam a não poder casar. É a
homofobia nas leis.

M e N não podem casar porque M é um homem do sexo masculino e N é uma
mulher do sexo masculino (o sexo aqui é aquela reles categoria
burocrática sem grande sentido mas com grandes consequências) . É a
homofobia *e* a transfobia nas leis. Se N pudesse mudar de sexo (coisa
tramada nos tribunais tugas) estava o assunto desse casamento
resolvido.

Mas nas raízes da homo e da transfobia destes 3 casos há uma que é
comum: ambas as fobias são construídas a partir de uma ideologia que
determina que há dois (e só dois) sexos, que as esses dois sexos só
podem corresponder dois papéis sociais (um para cada sexo) e que esses
papéis são "naturalmente" complementares (o guerreiro e a fada-do-lar,
o caçador e a recolectora, o dominante e a dominada, o assalariado e a
doméstica... – sim, podem existir excepções, mas o sistema dominante é
patriarcal).
Alargar o casamento a duos do mesmo sexo é uma martelada na
"naturalidade" da complementaridade dos géneros. Ainda não põe em
xeque a ideia de que os géneros estão "naturalmente" associados ao
sexo nem a ideia de que só há dois (que sejam lícitos/correctos/
saudáveis) . Mas já abre uma rachazita nese castelo ideológico que nos
lixa a vida e nos mói a cabeça todos os dias.

Não gosto destes mini-ataques às mijinhas. Mas vejo uma ligação (ainda
que não de causa/efeito) entre o gesto de alargar o casamento a duos
do mesmo sexo (sou pela abolição do casamento civil, já agora) e o
combate a um sistema de ideias que também alimenta as transfobias [2]
ao criar determinadas categorias e hierarquias entre essas categorias.

1) senhora e senhores "normais", claro – creio que quando o Américo
Thomaz promulgou o Código Civil em 1966 ninguém pensou n@s senhoras/es
transexuais, intersexuais ou "genderqueer" de alguma forma

2) e a coisa não se esgota na transfobia de "normais" contra trans –
também existe, por exemplo, da parte de algumas pessoas já submetidas
às cirurgias de construção genital contra as pessoa transexuais
não-operad@s (o que, creio, felizmente não é a regra)

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Pela abolição do casamento civil


Na recente novela do casamento vimos de tudo. Até vimos paladin@s do
conservadorismo populista a defender o casamento entre pessoas do
mesmo sexo – desde que tenha um nome diferente de "casamento".

Do PS nem vale a pena falar. A série de idiotices do
concordo-mas-vou-proibir fala por si. A disciplina de voto só para
alguns é absurda. As desculpas esfarrapadas sobre o "oportunismo" de
pequenos partidos (os projectos de lei foram entregues no Parlamento
há dois anos!) não conseguiram esconder que foi tudo meducho de perder
os votos de gentinha torpe para o PSD nas três eleições de 2009.

O PEV acha inconstitucional não estender o casamento a duos do mesmo
sexo – mas no mesmo projecto de lei queria proibir a possibilidade de
duas pessoas do mesmo sexo adoptarem em conjunto. Aquilo que hoje é
uma possibilidade só de casad@s passaria a ser uma possibilidade só
para *algumas/uns* casad@s. Enfim, combater uma expressão de homofobia
legitimando outra parece-me incoerente.

No discurso de encerramento das jornadas contra a homofobia, na
FCSH-UNL, o Francisco Louçã arengou contra a discriminação e acabou
por se contradizer ao prometer lutar pelo alargamento do casamento a
duos do mesmo sexo. Trata-se também de uma medida ainda
discriminatória por reiterar e continuar a legitimar o princípio
ideológico de que "2 é melhor que 3, ou 4, ou...".

Não compete ao Estado propor pacotes de regras pré-definidos
moralizantes. Quero poder escolher livremente as regras por que se
regem as minhas relações. Quero poder decidir que X me visita no
hospital, Y na prisão, que Z herda a casa e que toda a gente fode com
quem quiser sem ter indemnizar @s outr@s por "delito de adultério".

Querem mesmo lutar contra a discriminação?
Lutem pela abolição do casamento civil! Lutem pela liberdade de poder
decidir quem herda a minha tralha, pela liberdade de deserdar @s
ascendentes e irmã(o)s. Lutem pela liberdade de foder (ou não foder)
com quem quiser. Lutem pela liberdade de poder escolher quem me visita
no hospital e na prisão. Lutem pela liberdade de poder escolher a quem
concedo poderes de representação/ procuração para "desligar a
máquina". Lutem pelo fim da discriminação no imposto de selo sobre
doações. Lutem por todas essa discriminações que decorrem da ideologia
fundamental do casamento (monossexual, monogâmico, procriador,
pretensamente superior, pretensamente biológico, pretensamente
fundamental para a vida em sociedade).

Garantir alguns direitos (como alguns direitos relacionados com a
transmissão de bens ou a justificação de faltas para cuidar da
família, por exemplo) apenas sob condição de se viver assim ou assado
é execrável. Como o é sempre qualquer discriminação (negativa) de
estado.

Atacar o casamento civil é «atacar a sociedade»? Porreiro, pá! Porque
não é esta sociedade que quero. E vós?


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